Espúria Jan. XX23

Espúria

Jan. XX23

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Bastarda, ilegítima, falsa. Que não tem pai certo ou que não pode ser perfilhada. Que não está como o autor a fez. Cujo autor não é aquele a quem se atribui a autoria. Que se falsificou. Estranha à boa linguagem. Que é contrária às regras, inoportuna. A que faltam os sintomas característicos ou habituais. Despojada, privada 

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Esquisito

ler de olhos fechados

resistir

descobrir quão pouco tens para dizer

roubar a ladrões

sair por dentro

ler o que tinhas em mente

dueto a solo

perder-se

nunca estar sozinho

desistir a meio do caminho

ardor de lâmina que sentimos

quando se apaga a memória

romper a sombra

se a espessura desta o permitisse

escrever escrever escrever

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A esferográfica levantou-se e, retirando a tampa que lhe encobria o seio único, começou a escrevinhar no papel que fora deixado sobre a secretária.

Palavras sucederam-se a palavras e em pouco tempo um texto hieroglífico cobria completamente a folha, escorrendo já algumas letras e símbolos por sobre a superfície do único móvel da biblioteca.

Minúsculas gotas de tinta entranharam-se nos poros da madeira e plantas verbais brotaram do tampo. Flores de cores exóticas desabrocharam e começaram a declamar excertos de um romance há muito esquecido. E ao som das frases soltas que vogavam na espuma do ar a esferográfica cobriu-se e, ternamente enroscada na folha de papel como se de um lençol se tratasse, começou a dormir o sono dos séculos até que as flores murcharam e um suave odor de outono invadiu a sala entorpecendo os amontoados livros que jaziam nas estantes.

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Quase em silêncio

Podes dizer que é inútil nomear tudo o que existe e até tudo o que pode existir, no entanto, cada coisa está no seu lugar, mil e uma coisas em mil e um lugares, todas à espera de serem designadas, uma a uma, pelo seu nome próprio.

As palavras escritas não estão mortas nem perderam a voz, repousam apenas no branco da folha, suspensas em silêncio.

Se as disser, em silêncio ou em voz alta, erguem-se da página e voam em bandos, livres, completamente esquecidas da sua condição de prisioneiras.

As palavras escritas não são palavras salvas da decomposição, as palavras só estão vivas quando as dizemos, ainda que em silêncio, as palavras só estão vivas quando afinal as vivemos.

Avaro de palavras, avaro de frases, inimigo do enfático, não admira que prefira frases breves, compostas de raras palavras, atravessadas de silêncio, como correntes de ar em casas abandonadas. Ainda mal comecei e já quase termino, assustado pelas longas sombras projetadas. Depois volto atrás e retiro tudo o que está a mais, numa obsessiva compulsão de limpeza.

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A Reunião

Boa noite

Obrigado por me receberem hoje aqui nesta reunião de AA.

Espero que o meu testemunho seja útil para os mais novos ou possa mesmo assim ainda ajudar os mais velhos.

Até há bem pouco tempo a minha vida era um desastre.

A princípio era tudo muito bom. Mas depois deixei-me levar por aquilo.

Já não era só com amigos, à noite, por diversão.

Começou a ser de dia, a toda a hora, de manhã, à tarde.

Já não conseguia controlar.

E tinha aqueles amigos com quem partilhar … o vício.

O que não ajudava nada.

Depois vieram os encontros, os festivais, os bares, as performances….

Eu gastava naquilo todo o dinheiro que arranjava. Até cheguei a roubar, pedir emprestado e não pagar. A vender bens. Comprava, consumia, vendia, consumia…

A família e os amigos já não me toleravam, e com toda a razão, não tinham como.

Até que um dia, finalmente, consegui encontrar ajuda especializada. Tinha de ser.

E eles têm sido incríveis. Têm feito um trabalho realmente fantástico. Estou a melhorar a olhos vistos.

Apesar disso, sim eu sei, sei que serei sempre um dependente, desta adição… aos livros, às palavras…

Mas agora, hoje, aqui, posso dizer que estou sem… sem ler,…. estou sem escrever … poesia há 95 dias!

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O que disseram os outorgantes

(feito em quadruplicado, em casa de um desconhecido, no dia de carnaval do ano da graça de 2002)

Os primeiros outorgantes disseram ao que vinham e sentaram-se, derramando-se, na chaise longue da sala de julgamentos do tribunal. O juiz ouviu com atenção e só interrompeu a sua atitude para comer um gelado. Demorou cerca de vinte minutos a lamber as suculentas bolas do dito, respetivamente de caril e framboesa, e a mastigar o delicioso cone de bolacha.

A segunda outorgante, ougada com o gelado, protestou contra o inadmissível comportamento do juiz. Não, relevou mais do que uma vez, com o comportamento libidinoso em si de degustar a guloseima, ou sequer com a cara de gozo do magistrado, mas com o facto, que considerou discriminatório, de não ter sido facultado aos outros presentes, escrivão, outorgantes, público em geral – pouco – e porteiro do vetusto tribunal, os mesmos privilégios, a saber, a possibilidade de se abandonar aos prazeres da referida iguaria.

O juiz, um crocodilo experimentado nas sinuosas veredas que levam à verdade e na avaliação das perigosidades subjacentes às paisagens do poder judicial, sorriu parcialmente e não atendeu aos protestos da barata tonta.

- in dubio pro libertate!, adiantou maliciosamente.

- in dúbio, in dúbio! Se toda a gente viu, registou a segunda outorgante, ao nível do pensamento, sem ousar verbalizá-lo.

O terceiro outorgante, um noitibó africalhado, que chegou atrasado, entrou discretamente, com cara de sono e o cabelo bem desgrenhado, e sentou-se, delicadamente, na já citada chaise longue, ao lado do lagarto francês e da lesma faquir. Ouviu ainda assim, antes de poisar as desordenadas penas no lustroso assento, a lesma faquir aduzir que o valor patrimonial do locado tinha sido reiterado em carta cujo teor dava ali por reproduzido para todos os efeitos legais.

- Bravo!, aplaudiu sem entusiasmo o lagarto francês.

Embriagado com a excelência do sorvete, o julgador não os admoestou.

VN Famalicão, 8/7/2020 (para inertes)

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ANÚNCIO

Espelho vazio

procura imagem

para reflectir.

Oferece

óptima localização

bons ângulos

luz favorável

(com ou sem serventia

de holofotes)

um rosto familiar

mesmo em dias de

maior solidão.

Em caso de amor

sorri por dois

sem rugas adicionais.

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Quando o Algarve era só sul e os casamentos duravam para sempre

Eu e as minhas irmãs nunca distinguimos o barlavento do sotavento. Durante muito tempo nenhuma de nós sabia qual era qual e o Algarve era só um para nós. Tanto podia o barlavento ser sotavento como o sotavento barlavento, eram duas palavras que não nos diziam absolutamente nada. Foi só depois de começarmos a amar assolapadamente o algarve das ilhas e das noites sem vento que eu finalmente me comecei a preocupar com tal assunto e hoje posso dizer que sei onde começa um e acaba o outro. E nunca mais me enganei. Pensava nisto enquanto olhava para as pequeninas ondas que rebentavam na areia da praia de um qualquer barlavento.

O marido, preso na paisagem, mesmo em frente à água, andava à cata de condelipas para o nosso jantar. É um marido como deve ser: ama-me com o seu amor de marido. É um amor honesto, dentro dos limites canónicos. Ama-me porque sou mulher, a sua mulher; mas não me pode admirar porque a sua mulher não é um homem. Caso fosse, admirar-me-ia mas não me poderia amar (estas nuances são como nuvens). Falta então, pela força das circunstâncias, admiração ao seu amor e faltando essa admiração fica a faltar o amor. Mas à noite ele abre as condelipas, põe a mesa e despeja o vinho. Porque isso pode um marido fazer pela mulher que ama mas não admira.

E eu, enquanto como e bebo o vinho, fico a pensar nas mulheres em geral. Nas minhas irmãs e na nossa dificuldade de anos em chamar barlavento ao barlavento, sotavento ao sotavento. Penso nas condelipas que ele desenterrou e trouxe e cozinhou, e devia estar tão feliz e estou, mas penso nas mulheres em geral e pergunto:

- Porque é que ainda estamos juntos?

- Porque gostamos de comer condelipas e beber vinho.

Ele é prático como um homem que sabe que no fim do dia o que conta é o que se come e o que se bebe.

- Se o amor já se foi… - insisto, algo descabelada, com o desnorteamento próprio de quem não sabe onde ficam os mais básicos pontos cardeais.

- Mas ficou a amizade, a admiração…

Pela janela entra uma metade de lua a fazer-me cócegas na planta dos pés, o que me provoca de imediato uma tremenda vontade de rir.

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intermitências da memória

por vezes sinto que habito a casa do esquecimento. tão rodeado que estou de livros e mais livros e de dezenas de cadernos repletos de escritos e apontamentos. por vezes canso-me e entristeço-me do esforço que faço para recordar, senão tudo, pelo menos mais vivamente. estar mais perto do que já vivi, quer interiormente, quer mundanamente, pelo corpo e pela alma, mas que não recordo a maior parte. toda esta parafernália de papel em suma demonstra-o, prova-o inelutavelmente. que outro testemunho presta perante o mundo, que outra afirmação resulta desta acumulação da qual fiz a minha casa? se leio um livro – e estou sempre a ler um livro qualquer – quando o acabo não lhe recordo uma única frase. guardo-lhe apenas o sentido – um sentido – geral que, daí em diante, todos os dias lentamente se esvai e o que resta, seguramente, é o livro – objeto físico – que gostei tanto de ler e ao qual um dia quererei voltar. por isso, guardo-o, guardo-os a todos na estante por detrás dos meus ombros por cima dos quais às vezes espreito, e fico impressionado com tantos sentidos vagos que moram neste espaço, senão em mim. e que se transformaram na minha memória como fósseis difusos revelando mais e mais cortinas que por sua vez desaparecem no vazio. talvez, afinal, eu não habite a casa do esquecimento, mas o esquecimento esteja em mim e esta, por fim – a casa -, seja a minha memória. e isto conduz-me, numa curiosa sinestesia, ao genius loci de Aldo Rossi. se esqueço mas guardo quase tudo, poderia pressentir a minha casa assim? como uma alma abrupta, entre recordar e esquecer?

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Colectivo

Paulo Moreira

Luís Ene

Pedro Jubilot

Vítor Gil Cardeira

Marco Mackaaij

Sara Monteiro

Dário Agostinho

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